quarta-feira, maio 30, 2018

eu [poema 187]

Vou pernoitar no cimo da montanha,
junto a Deus
Ou dentro da terra, dentro de Deus
Vou olhar-me ao espelho e dizer morri
Ou morreu o meu outro eu, eu o vi
Através de um espelho antigo, numa moldura.
A partir desse dia ficou parado como fotografia,
Como pedra dura
E eu fui para Deus, ou o meu outro eu.
No meu espelho morreu
onde renasci

sexta-feira, maio 25, 2018

Não percebo porque é que são sempre os mesmos

Amanhã há uma formação com o tema tal, e aparecem aquelas pessoas que já sabemos que irão. Um dia destes temos retiro, e aparecem as mesmas pessoas. É preciso que se trate deste assunto ou daquele, que se limpe a igreja ou se trate da refeição tal, e são praticamente os mesmos. Vamos realizar um encontro da paróquia, uma viagem ou uma actividade cultural, e aparecem os mesmos. São os mesmos que nos dão alegria por serem eles que participam, por serem com quem contamos, quem nos segura a comunidade, quem garante a mesma comunidade, quem faz a paróquia ser uma paróquia. Mas não sei que dizer ou pensar dos outros oitenta ou noventa por cento de paroquianos, que até vão à Eucaristia, mas que não aparecem nunca mais!

terça-feira, maio 22, 2018

águias e serpentes [poema 186]

Era uma águia com uma serpente nas garras
    Era uma serpente morta à beira da estrada
Era uma águia que não gosta de serpentes
    Era uma serpente morta à beira da estrada
Era uma águia que levou para longe a serpente
    Era uma serpente morta à beira da estrada
Era uma águia que não podia com serpentes
    Era uma serpente morta à beira da estrada

Era uma águia que voou com uma serpente,
Morta, mas que era uma serpente.
Era uma vez uma águia com uma serpente

domingo, maio 20, 2018

A Igreja dos “chineses”

Não tenho nada contra os chineses, nem contra as suas lojas que proliferam por todo o lado. Também não questiono a qualidade dos seus produtos. Poderia questionar o facto de eles não pagarem impostos, mas não sei o suficiente do assunto, nem é sobre isso que pretendo escrever. O título que escolhi também não é depreciativo, nem pressupõe que haja uma Igreja chinesa. 
Já aqui utilizei uma expressão da qual não sou propriamente dono, embora me tenha apoderado dela, a “Igreja supermercado”. É com base nessa expressão que hoje reflecti sobre esta Igreja que as pessoas procuram apenas quando querem algum sacramento, e que, no restante espaço das suas vidas, não procuram nem pretendem procurar. Essa Igreja que alimenta serviços mas não alimenta a fé. Essa Igreja que alimenta tradições, mas não se preocupa com o anúncio da Boa Nova. Essa Igreja a que se vai quando se precisa de alguma coisa materialmente ou ritualmente falando. 
É essa Igreja-loja que hoje me ocorreu comparar com a loja dos chineses na medida em que as pessoas a procuram, independentemente da qualidade da oferta e exigindo preços de saldo ou preços baixos. Apetece-me manifestar a minha tristeza por um tipo de pessoas que não vivem na e para a comunidade cristã, não contribuem ou partilham com a comunidade paroquial, e exigem todas as regalias possíveis, quando bem lhes apetece, só porque no escaparate se pode ler “Igreja”. 
Na conjectura de alguns, a Igreja tem de ser desprendida, pobre, miserável, e assim o mais injusto que ela poderia fazer era tentar manter uma gestão equilibrada das suas contas, da sua administração e dos seus bens. Como Igreja que é, teria de ser espaço gratuito e aberto para todas as necessidades, mesmo que se esvazie de conteúdo e se aproxime da falência.
Enfim, eu também gostava que tudo fosse como nas primeiras comunidades cristãs, que tudo fosse partilhado e tudo fosse gratuito. 

sexta-feira, maio 18, 2018

Não quero ser [poema 185]

Atras dos coxos correm as pedras
Só elas conseguem correr, atiradas
Porque os coxos são coxos, não podem correr
Não podem ser atirados, são pedras
Como se tivessem vida sem ter

Hajam pedras para morrer

quarta-feira, maio 16, 2018

santinhas e missinhas

Não tem muito mais que metro e meio. Tudo nela parece diminutivo. Até no trato. Chamam-na de Alicinha. Não a conheço o suficiente. Agora que o expresso, dá-me vontade de rir, pensando que é capaz de não ter tamanho suficiente para se conhecer bem. Pensamentos tolos, mas que me poem um sorriso nos lábios. Dizia eu que quase tudo nela tem a ver com diminutivos. Por isso fala em santinha, procissãozinha, missinha, e outras inhas a propósito da festa do próximo fim-de-semana. Eu gosto da Alicinha e gosto daquilo que me parece ser o lugar carinhoso das palavras em diminutivo. Mas quando ouço coisas como santinho ou missinha, fico com uma sensação estranha de que, às vezes, estas coisas não são mais que uma diminuição daquilo que valem, daquilo que são! 

segunda-feira, maio 14, 2018

A síndrome de Burnout e os padres

Tenho andado a ler umas coisas sobre a síndrome de Burnout nos padres, porque me foi sugerida a leitura de uma notícia que dava conta do suicídio de alguns sacerdotes com esta síndrome. Os textos falavam que o grau de exigência da Igreja é muito grande. Espera-se que o padre seja, no mínimo, modelo de virtude e santidade. Ora imaginem se isso fosse assim tão fácil, quantas canonizações de padres teríamos hora a hora. 
Eu diria que mais do que esperar de um padre, se lhe exige. Exige-se-lhe a perfeição. Que esteja em todo o lado. Que tenha um sorriso constante, a amabilidade, o bom acolhimento, a pobreza e o desprendimento próprios da vocação, a sabedoria para todas as respostas, o celibato que é imensas vezes castrador, as certezas absolutas da fé. Que seja impecável. Que não peque nem seja frágil. Que não cometa erros. Ou seja, que tenha superpoderes. 
Uma pesquisa de 2008 da Isma Brasil, organização de pesquisa e tratamento do stresse, apontou que a vida sacerdotal é uma das profissões mais stressantes. Naquele ano, quatrocentos e quarenta e oito entre mil e seiscentos padres e freiras entrevistados sentiam-se "emocionalmente exaustos". A psicóloga Ana Maria Rossi, que coordenou o estudo, afirmava que "um dos fatores mais stressantes da vida religiosa é a falta de privacidade. Não interessa se estão tristes, cansados ou doentes, os padres têm de estar à disposição dos fiéis vinte e quatro horas por dia, sete dias por semana". Vou continuar estas leituras.

sexta-feira, maio 11, 2018

As festas e a fé

Quando saí de casa, no Domingo, para celebrar as missas, a manhã estava cinzenta. As nuvens pousavam, frias, sobre nós. As estradas estavam geadas. A aldeia onde ia celebrar a primeira missa ficava a várias dezenas de quilómetros. Pouca estrada se via o suficiente para ser desbravada com ligeireza. Cheguei atrasado uns oito minutos da hora prevista para a missa. Todos me esperavam dentro da Igreja, apesar desta também estar habitada pelo frio. Era, no entanto, menos fria que a rua. 
Porém, enquanto atravessava a aldeia, a meio do caminho, veio ao encalço do meu carro uma senhora que me obrigou a parar com gestos de “espere aí mais um pouco”. Enquanto abria o vidro do meu lado do carro, fui-lhe recordando que já estava atrasado e não havia tempo a perder. Ela insistiu para dizer que precisava que eu marcasse uma festinha a santo tal no dia tal, que era a cerca de quinze dias desse Domingo. Era só uma missinha e uma procissão. Com a vida organizada para os próximos meses, expliquei que as coisas não se podiam tratar deste modo. Nem as festas religiosas se devem marcar só porque alguém, do nada, por mais bem intencionada que esteja, se lembre de tal. 
Não consegui perceber propriamente o motivo de tal desejo e pedido. Mas o que mais me incomodou foi o que ocorreu depois que subi de novo o vidro do carro. A senhora que estivera uns quinze minutos ou mais à minha espera na rua fria, o que é de louvar pela coragem, e que desejava honrar o santo com uma missa e uma procissão, regressava então para os seus aposentos, para a sua casa que era logo ali ao lado. A missa daquele dia que a celebrasse eu e os outros que me esperavam.
E nós, padres, temos de continuar a acolher esta gente na esperança de que um dia percebam a verdadeira fé e a ter fé de verdade.

quarta-feira, maio 09, 2018

os muros [poema 184]

Do outro lado da parede, só, a falar com seu botões
Que não são de rosa nem de marfim, são botões
Imaginários por detrás de muros invisíveis,
Construídos na loja dos vizinhos, aqui ao lado,
há sempre um lado por detrás de cada muro de cada parede,
por mais pintada de branco que seja

E a falar com os botões morre, sem paredes,
Do outro lado do muro, só.

domingo, maio 06, 2018

Das crianças é a verdade dos céus

A avó contou o sucedido como quem conta a melhor coisa do mundo. Pelos vistos, ela tinha-se esquecido de parabenizar uma das suas melhores amigas no dia do seu aniversário. Passara já um dia da data quando foi recordada pelo lapso, e ficou muito triste. Aliás, muito preocupada. Como fora capaz de se esquecer de uma data que lhe era tão especial! Ia no carro, de regresso a casa, conduzindo, lamentando-se do esquecimento, e falando sozinha da desfaçatez que a preocupava. Falava sozinha mas não estava sozinha. No banco de trás trazia os seus dois netos, uma menina de oito anos e um menino de cinco anos. Contou-me então que, às tantas, no meio do seu monólogo, foi interrompida pelo menino que lhe disse. Ó vó, não te preocupes porque os amigos desculpam sempre. A avó ficou sem palavras. Na verdade, os amigos autênticos são sempre capazes de perdoar. E ouvi-lo da boca de uma criança, que à partida, prima pela ingenuidade, só dá maior garantia a esta verdade. Não há palavras para a alegria e admiração da avó. Os verdadeiros amigos perdoam sempre.

sexta-feira, maio 04, 2018

Esperar não esperar [poema 183]

Vou ali e já venho, esperem
São apenas cinco minutos de terra
Uns palmos de arvoredos e pássaros
Uns goles de água tépida a pingar
No rosto sulcado dos anos passados
Serei uma fotografia a preto e branco
Ou cor de sépia ou um filme clássico
Tudo será mais rápido e parado,
Sem vozes ou adereços arrojados
Será a vida no écran a passar
Como passa o tempo, não esperem