sexta-feira, maio 29, 2015

Conversas com gente de idade

Conversas com gente a que costumamos designar de idade, como se as outras não tivessem qualquer tipo de idade. São aqueles a quem já perdoamos tudo, mas para com os quais temos algo próximo da comiseração, o que não pode ser bom. São aqueles que entregamos à noite da vida, como se já não tivessem luz para iluminar. Mas são esses os que mais sabem da vida, os que mais nos podem ensinar da vida. São os que já viveram.
Olhe, senhor padre, aqui estou sem forças. Olhe, senhor padre, que tenho esta doença. Já não vejo para ler. Já não ouço quase nada. Quando eu era jovem. Enquanto poder, não preciso que me ajudem. Era bem melhor estar na minha casinha. A vida é assim. Os meus filhos não me vêm ver. Vou-me entretendo a rezar. Já não sei que faço aqui. Era melhor o Senhor me chamar. Estas pernas não ajudam nada. Vou outra vez ao médico. Já fui operada oito vezes. Tomo nove comprimidos por dia. Não consigo comer sozinha. Aqui estou como Deus quer. Faça-se a vontade de Deus.
São aqueles que nos ensinam que a vida tem valor até ao fim, mesmo quando parece que já não há vida. São aqueles que vivem de forma diferente, sem correrias, sem pressas. São aqueles que gastam o tempo a viver. Que fazem tudo para viver, mesmo quando lhes apetece morrer. São aqueles que mais facilmente se entregam ao Senhor, porque são aqueles que dão conta que precisam Dele. São aqueles que um dia seremos nós, e com os quais deveríamos aprender a viver, mesmo que nos falte vida.

terça-feira, maio 26, 2015

sonho de céu [poema 58]

E acordar no sonho, pousar nele
Abrir cada olhar para o paraíso
Deixar a terra que trabalhe a terra
Deixar o homem que trabalhe o homem
E seguir como o dia persegue a noite
Pensar na noite como a luz que é de dia
Dizer que aqui é o céu e não voltar
Acordar no sonho do céu, e não voltar

sábado, maio 23, 2015

As leituras da dona Constância

A Constância é, como o próprio nome indica, constante. É constante na sua fé e no seu querer a fé. Não faz parte do grupo daqueles que nada procuram na fé. Por isso lê coisas de Deus e tem na cómoda do seu quarto uma resma de pequenos livros. Pequenas sumas de doutrina e palavras que quase as decora para ter fé. É uma fé genuína. É uma Constância genuína. Mas apenas lê esses pequenos livrinhos, que embora bons e úteis, somente alimentam aquilo que muitos denominam de beatice. Que não aprofundam. Que não fazem reflectir. Que pouco fazem meditar. Talvez sejam a leitura que tantos anos lhe ensinaram a ler. Talvez façam dialogar com Deus. Talvez sejam a leitura que Deus quer que eles façam. Talvez, mas também talvez não.
Ela levou alguns dos seus livros à sacristia para eu ver, e aprovei-os, como se ela precisasse essa aprovação e eu fosse dono de aprovações. Dei-lhe, porém, outra sugestão. Leia a Bíblia, dona Constância. Gaste-a nas mãos, no pensamento e no coração. Leia livros com mais páginas e mais profundidade, alguns documentos do magistério quiçá. Leia para além de uma leitura que pareça fácil. Leia Deus em cada leitura.
São assim os nossos cristãos. São bons, são genuínos, têm fé. Às vezes são constantes. Falta-lhes, ou talvez não, ser mais profundos no aprofundar do mistério. É quase como amar sem aprofundar o amor.

quarta-feira, maio 20, 2015

Cão de esmola [poema 57]

Cão de esmola e de trela
Às pernas do dono pedinte
Migalha é pérola, é ela,
Dona de ti, mais de vinte

Dono que sejas deves querer
Que pérola seja pão de viver

sexta-feira, maio 15, 2015

Falar de Deus e com Deus

Parece-me que as nossas liturgias, as nossas pregações, as nossas orações estão cheias de palavras tão feitas, tão clericais, tão eruditas, tão bem compostas, mas tão pouco nossas. Falamos de Deus e com Deus como se não estivesse ao nosso lado como estamos ao lado uns dos outros. Usamos as palavras sem as tornar nossas. Falamos com a boca, às vezes com a inteligência, mas pouco deixamos que fale o coração, que é quem melhor sabe usar as palavras.

terça-feira, maio 12, 2015

espelho [poema 56]

Olhar-me na água e encontrar-me, espelho
De ti não sou nada, mas sou
Água da alvorada, ao final da tarde
Obra criada, ferida, calcada, porém
Beleza de quem cria pelo maior bem.

sábado, maio 09, 2015

Clericalidade da Igreja

O padre disse isto. O padre fez aquilo. O padre quer assim. Falo da minha paróquia e penso no meu padre. E quando penso na igreja penso nos padres. E quando falo mal da igreja falo dos padres. E a Igreja deve mudar, isto é, os padres devem mudá-la. Ainda por cima são cada vez menos. E os padres pensam o mesmo. Os padres pensamos que pensamos diferente, mas ainda vemos a igreja a partir dos padres. Os padres pregamos a Igreja a dizer que somos todos, mas no subconsciente vivemos a igreja como se fossem os padres. Caímos no risco, e palermice, de olhar os outros fiéis a partir de nós. De lhes dar espaço, mas somos nós que o damos. De lhes conceder ministérios, mas à volta do nosso ministério. E, sem querer, caímos no poder de sermos condutores de uma barca que é de Jesus e que está cheia de imensas pessoas, das quais só um pequeníssimo número é padre. E às vezes até parece que indicamos o caminho, mas não caminhamos. Às vezes esquecemos que fazemos parte da igreja que é tão grande e nós somos tão pequeninos. E quem fala dos padres, pode falar dos bispos, e até do Papa. A cabeça da Igreja é Cristo, do qual todos nós somos corpo.

quinta-feira, maio 07, 2015

ando [poema 55]

Vou ao lado e não conduzo
Fico atrás, sempre para trás
O mudo vê e o cego fala
Ando um pouco acima, do degrau
Planando como ave, rara
Que não conta e não se vê
Tão só numa asa

terça-feira, maio 05, 2015

Pão da Vida [poema 54]

Tragas-me no meio do silêncio
Doce paladar que amarga e dói
Ázimo sem sal que necessito
Tão doce
E dói

sexta-feira, maio 01, 2015

sementeira [poema 53]

Semeia-se nos campos o vento
Fruto lhe nasce a tempestade
O barqueiro não chega, soprou
Outros ventos nasceram ali
Cobre-se a terra, ela amainou
O barqueiro chega, não mais voltou