terça-feira, dezembro 28, 2010

O Alcindo que não pode entrar no cemitério

O Alcindo é um bom rapaz. Pode não ir à missa, mas não falta aos funerais. Pode não querer nada com Deus. Mas faz tudo pelos amigos. Por isso não falta aos funerais. E costuma ir até ao cemitério, ficar perto da urna e só sai depois do caixão ter sido coberto com a terra. Faz parte do seu ritual. E que ninguém lhe diga que está errado. Pois é assim que ele sente. É assim que ele acha que Deus quer. É assim que ele julga que tem de ser a sua vida.
Porém, no dia treze, encontrei-o à saída do cemitério, depois das exéquias de um amigo. Eu vinha a sair e ele não ia a entrar. Estava estacionado ao portão. Cumprimentámo-nos. Como estamos à vontade um com o outro, indaguei. Então hoje ficas por aqui? Não entras? Nem pareces tu. Ao que ele respondeu com uma convicção que quase me convenceu, e com uma seriedade que ainda agora me perturba. Hoje não posso. Fui operado anteontem e não posso. Dizem que isto pode infectar. Perguntei-lhe se tinha sido proibido pelo médico e disse que não, padre. Toda a agente sabe disso. Respondi que eu não sabia. E preferia não saber. As coisas que as pessoas sabem e as coisas que não sabem!
Mas já que toda a gente sabe, alguém me pode dizer como aparece a infecção!

4 comentários:

JS disse...

Ó Confessionário, mesmo que tenhas a sorte de oficiar em cemitérios extremamente bem cuidados, certamente não os consideras o expoente máximo da salubridade. E com certeza te lembras da famosa lei que proibiu os enterros nas igrejas, por razões de saúde pública.

Claro que poderias retorquir ao Alcindo dizendo-lhe que actualmente o sítio mais frequente e perigoso para se apanhar uma infecção é de facto... o hospital.

Anónimo disse...

Só pode ser porque foi lá enterrado um membro do governo!

Confessionário disse...

olá, último anónimo...
passei só para dizer que ri espalhafatosamente!

ahhh, e JS, a tua tb está óptima: não é no cemitério, mas nos hospitais que mais infec~ções apanhamos! heheheh

Maria disse...

Padre Olá, achei muito bom o seu artigo, e isto vem mesmo a respeito do que se passa no nosso cristianismo:Ignorancia,falta de informação, tradicionalismo, e falta de cultura do povo.Mas estamos no Sec. XXI, ou ainda estamos nos seculos mais antigos.Aproveito para lhe juntar um artigo do Expresso de Henrique Raposo:
Deus é moderno
O livro "O Regresso de Deus" (Quetzal) revela que o ateísmo cool é uma marca exclusivamente europeia. A Europa está sozinha na ilegalização de Deus. A modernidade tem várias faces.
I. Seguindo a ideia das "Múltiplas Modernidades" , Micklethwait e Wooldridge mostram uma coisa simples e óbvia. Uma coisa que, apesar de ser simples e óbvia, continua a ser recusada pelas lentes europeias: a modernidade não matou Deus. Nos séculos XIX e XX, a elite europeia consagrou o fim da religião como uma das marcas obrigatórias da modernidade. A fórmula era simples: sociedade moderna = sociedade a caminhar na direcção da desespiritualização da vida em comunidade. Ora, contra a vontade desta teoria, várias sociedades (EUA, Índia, Israel, China, Brasil, etc.) conciliam a modernidade com a fé. Estas sociedades são modernas e religiosas, não existindo aqui qualquer dicotomia antagónica insanável.
II. Isto quer dizer duas coisas:
(1) a Europa está sozinha na ilegalização de Deus. A modernidade europeia é apenas isso: a modernidade europeia, e não o modelo universal que todos têm de seguir. A Modernidade é plural. Por outras palavras, não existe Modernidade; existem apenas modernidades.
(2) Enquanto a Europa permaneceu como árbitra cultural do mundo, a América simultaneamente moderna e religiosa "podia ser descartada como uma bizarria". Ora, em 2010, podemos dizer o seguinte: a Europa é que é uma bizarria, uma bizarria ateia no meio de um mundo de crentes.
III. O iluminismo americano sempre conviveu com a religião, ao contrário do iluminismo europeu. "O Regresso de Deus" mostra - precisamente - que a visão americana da modernidade venceu a visão europeia. Tal como defendiam os founding fathers, o Estado deve ser laico, sim senhora. Mais: o Estado não deve evitar apoiar esta ou aquela igreja. Mas este laicismo político do Estado não deve implicar a secularização forçada da sociedade. Estado e sociedade são coisas diferentes. Em suma, o laicismo americano venceu o laicismo europeu (i.e., francês).
PS: Fala-se muito do revivalismo do Islão, por razões mediáticas óbvias. Mas depois de lermos este livro fica a impressão de que o verdadeiro revivalismo está no lado do cristianismo. O cristianismo está em ascensão em todas as partes do mundo, inclusive na China. Os chineses até têm a sua Fátima e o seu "marianismo". E o cristianismo também conquistou o seu espaço na Índia. Ou seja, o cristianismo está em alta nos terrenos do costume (EUA, América do Sul), mas também está a ganhar espaço nos gigantes pagãos do Oriente.
Henrique Raposo, A Tempo e a Desmodo, Deus é moderno
Obrigado